Seguradoras contabilizam prejuízos com esquema nacional de simulação de sinistro

Dizem que o mundo é dos espertos. Se for levar o provérbio popular ao pé da letra vai constatar que tem muita gente espalhada pelo mundo que adota a lei da vantagem como se fosse uma filosofia de vida. Quer exemplos? Há quem consiga dormir em paz depois de simular um acidente de trânsito, cuja vítima é a pessoa mesma, ou forjar o roubo do próprio veículo, tendo conseguido registrar a fraude em um boletim de ocorrência, confeccionado numa delegacia.

Para se ter uma ideia, o seguro DPVAT [Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres] detectou, ano passado, 280 tentativas de fraudes somente em Alagoas. De janeiro a setembro deste ano, a seguradora Líder, que administra o benefício, já identificou 110 casos de fraudes no Estado. E parte destas investidas é justamente quem ousa mentir para se beneficiar. O pior é que, em algumas ocasiões, eles acabam conseguindo, mesmo com todo o aparato de segurança adotado pela empresa.

Dados do núcleo de estatísticas da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) revelam que, de janeiro ao início do mês de outubro deste ano, 562 carros e 1.935 motocicletas foram roubados em Alagoas. Outros 822 veículos e 163 motos foram furtados, no mesmo período. Conforme o órgão, há registros de 1.881 recuperações. No ano de 2017 inteiro, foram roubados 827 veículos e 2.282 motocicletas. Furtos notificados: 960 e 233, respectivamente, com 2.250 recuperações.

Por trás destes delitos pode estar um plano aparentemente de fácil execução. Com o documento oficial em mãos, expedido pela Polícia Civil, pode-se acionar a seguradora e dar entrada em um processo para receber o prêmio do seguro. Dependendo da apólice contratada, é garantido ao cliente o repasse do valor do bem equivalente àquele dia.

Enquanto faz um comunicado falso, o golpista já escondeu o automóvel e acredita que não será descoberto. No Brasil todo há relatos e até prisões de suspeitos que tiveram os planos descobertos. Em novembro do ano passado, dois homens foram presos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, suspeitos de aplicar golpes em uma seguradora de veículos. O proprietário do carro, João Erinal de Almeida, de 45 anos, era cúmplice do plano.

Com um comparsa, sonhou lucrar R$ 120 mil com a seguradora. Ele financiou o automóvel, um Honda Civic, e tentava vendê-lo com placas de Brasília (DF), numa média de R$ 100 mil, em um estabelecimento comercial. Falou com dois amigos, Philipe Fontinele de Sousa, de 29 anos, e Edson Brito Reis, de 33, e articularam o esquema. Foi feito um boletim de ocorrência, denunciando roubo e, em seguida, o carro seria vendido.

Eles não contavam que, na estrada até o estabelecimento, foram abordados por policiais federais. Durante a abordagem, confessaram a estratégia e foram levados para a delegacia. Tudo foi combinado pelas redes sociais, conforme estava gravado no celular dos presos.

Em Campina Grande, no interior paraibano, o mesmo crime foi flagrado pela polícia. Um funcionário público de 35 anos teria comunicado o falso crime à polícia e o veículo acabou sendo localizado. O carro, Hiunday i30 de cor preta e placas da Paraíba, foi encontrado após uma pessoa ligar para a polícia informando o roubo. Segundo a suposta denúncia, um homem encapuzado e armado com um revólver teria roubado o carro do amigo do denunciante. Era tudo mentira.

O fato é que, com as buscas, a PM localizou o veículo e o suposto ladrão. O fraudador ficou cara a cara com a pessoa que teria roubado seu carro e não conseguiu esconder a farsa. Foi revelado que os dois tinham combinado tudo para que o valor do seguro fosse pago.

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FRAUDADORES REGISTRAM BO E ACIONAM SEGURADORAS

Em Alagoas, situações assim são rotineiras e a Polícia Civil se articula com as seguradoras de veículos para criar mecanismos que evitem tais práticas. Os resultados desta parceria têm sido positivos, conforme revela a delegada Maria Angelita Sousa, da Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos e Cargas da capital.

“As seguradoras trabalham junto com a polícia e, em determinados casos, enviam representantes para Alagoas com o propósito de colaborar com a investigação. Afinal de contas, é de total interesse destas empresas o esclarecimento dos fatos e a identificação dos possíveis fraudadores”, afirmou a delegada.

Segundo ela, as grandes seguradoras, que são alvos destes golpistas, também criam estratégias e meios tecnológicos mais atuais quando suspeitam de delitos desta natureza. “Elas [as empresas] desconfiam logo quando recebem os boletins de ocorrências. E, quando avaliam que há um indício de fraude, procuram a Polícia Civil para cobrar uma apuração específica”, detalha.

A equipe da delegacia especializada revela que os fraudadores, costumeiramente, tentam esconder os próprios veículos em espaços (sobretudo garagens) inacessíveis e longe de qualquer suspeita da população e da polícia. Em alguns casos, entregam o carro para desmanches. As peças são negociadas com os criminosos a preços fora do que é praticado no mercado convencional. Quando sentem que não deixarão rastros aparentes, seguem para a próxima etapa do esquema: que é criar um factoide.

A delegada Angelita diz que tem notícias de ocorrências em que o veículo é levado para outras cidades com o auxílio de terceiros. Para que o golpe seja concretizado se produz um boletim de ocorrência, dando a notícia (fake) de que o bem fora roubado ou furtado. A seguradora, com base na papelada que recebe e seguindo os requisitos, podem deferir o pagamento do prêmio, concretizando o plano do cliente.

Até o momento, a Polícia Civil não tem média de valores que foram pagos (até porque isto diz respeito às seguradoras). Só frisa que quantidade de tentativas de golpes contra o seguro é rotineira. No entanto, a titular da especializada assegura que, dos casos que chegam ao seu conhecimento, em mais de 50% deles estão sendo possíveis a desconfiguração dos crimes, o que significa dizer que a seguradora não paga o prêmio para o fraudador.

Apesar do esforço conjunto e dos resultados positivos, ela ressalta que não se trata de um delito de fácil elucidação. “A suspeita de que aquela notícia é falsa precisa de averiguações posteriores à investigação do suposto roubo ou furto”.

INVESTIGAÇÃO É DIFÍCIL DE SER CONCLUÍDA

A delegada de Roubos e Furtos de Veículos garante estar atenta a esses casos e revela que está trabalhando em fatos relatados pelas seguradoras para tentar prender os golpistas. Informa, todavia, que não pode passar mais detalhes das investigações em curso.

“Mas, sei que o crime acontece e estou continuamente ouvindo supostas vítimas, fazendo juntada de documentos, bem como analisando e reanalisando boletins de ocorrência, que supostamente tenham sido resultado de uma notícia falsa”.

De acordo com Angelita, é muito difícil fazer a prova da fraude porque necessitaria localizar o veículo e descobrir como foi montado o plano. “Normalmente, eu chamo os suspeitos por intimação, os que registram os BOs, e com algumas técnicas de investigação percebo que a pessoa acaba entrando em contradição. A partir disso, o crime é configurado justamente pela desenvoltura do suspeito durante o depoimento”.

A delegada investiga se as tramas são feitas de maneira isolada, como é de costume, ou se há uma ideia orquestrada, caracterizando crime organizado.

MAIS DE 17 MIL TENTARAM FRAUDAR DPVAT EM 2017

Em 2017, a seguradora Líder informa que mapeou 17.550 tentativas de fraude que, se pagas, resultariam em perda na ordem de R$ 222,9 milhões em pagamentos indevidos, em todo o Brasil. De janeiro a setembro de 2018 já foram identificadas 8.999 fraudes ao seguro DPVAT.

Neste período, as ações proativas da seguradora Líder resultaram em 32 sentenças condenatórias, 51 condenados, 31 cancelamentos, suspensões ou cassações de registros em órgãos de classe e 16 prisões em todo o país.

Por meio de nota, a seguradora Líder informou que o combate às fraudes é uma das principais atribuições da empresa, visando garantir que os benefícios do seguro DPVAT continuem atendendo a quem de fato precisa. Desde o ano passado, as estratégias de prevenção, detecção e investigação de fraudes ganharam ênfase, conforme revela.

“O uso de tecnologia tem sido o grande aliado neste trabalho. Todos os pedidos de indenização do seguro DPVAT recebem monitoramento contínuo, sendo avaliados por softwares de inteligência artificial, que contém ferramentas de filtros sistêmicos de ocorrências suspeitas, além de controle de riscos”, destaca a Líder.

Ainda de acordo com a seguradora, os casos considerados merecedores de apuração mais detalhada são enviados, ainda, para uma equipe que investiga in loco a existência de irregularidades. E garante que, na identificação de algum tipo de irregularidade, uma notícia crime é encaminhada aos órgãos competentes. As fraudes identificadas, segundo garante, são acompanhadas em tempo real pela Superintendência de Prevenção e Combate a Fraudes.

“A implantação de ferramentas de Analytics, com mais de 200 variáveis; capacitação da equipe em análise documental e implantação de modelos estatísticos dobraram a capacidade de detecção de fraude”, revela.

Fraude em seguro é crime e a seguradora Líder faz questão de destacar que mantém canais para que qualquer pessoa possa denunciar casos suspeitos. Se o beneficiário souber de casos em que as pessoas solicitaram a indenização do seguro DPVAT sem que tenham se ferido em acidente de trânsito ou que estejam falsificando documentos para obter este benefício, as denúncias podem ser feitas por meio do 0800-0221205, ou no site (www.seguradoralider.com.br). As ligações são gratuitas e em nenhum dos dois canais é preciso se identificar.

GOLPES SE ESPALHAM PELO BRASIL

Não só em Alagoas a situação preocupa. Em todo o Brasil, a possibilidade de fraudes em sinistros de automóveis também vem chamando a atenção. Tanto que, em 2017, as seguradoras suspeitaram que quase 5% dos casos registrados fossem, na verdade, um golpe. O número pode parecer pequeno, mas corresponde a 11,88% dos valores totais pagos aos segurados.

Os dados foram compilados pela Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg), que anualmente publica um relatório com indicadores para a quantificação de fraudes. E o documento aponta que elas vêm crescendo. Em 2016, a suspeita recaía em apenas 3,4% do total, o que significa um aumento de 1,1% em um ano.

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A quantidade de golpes devidamente comprovados também apresentou um acréscimo: passou de 0,4% em 2015 para o dobro, ou 0,8%, em 2017. Colocando em reais, isso quer dizer um senhor prejuízo. No ano passado, foram pagos pelas seguradoras R$ 20,9 milhões em casos onde as fraudes foram devidamente comprovadas posteriormente.

Em 2017, o estudo passou a contar novamente com a participação da seguradora Líder, com o retorno dos dados do seguro DPVAT, que pagou mais de R$ 2,4 milhões a fraudadores, como aponta o relatório, divulgado no último mês de julho. Ao todo, 98 seguradoras participaram da pesquisa da CNSeg.

Chamado de SQF, o Sistema de Quantificação de Fraudes da confederação é alimentado pelas próprias empresas do ramo e traz uma série histórica das ocorrências. Os resultados consolidados do ano passado apontam que os sinistros ocorridos em todos os segmentos somaram aproximadamente R$ 33 bilhões. Deste total, R$ 5,2 bilhões foram resultados de sinistros suspeitos, ou 15,8% do total.

Já o valor dos golpes que puderam ser efetivamente comprovados somou aproximadamente R$ 730,1 milhões. Os valores são apurados a partir das estatísticas da Superintendência de Seguros Privados (Susep), levando-se em consideração somente os ramos, períodos e as seguradoras que informaram no sistema os valores que compõem o indicador em questão.

MERCADO DE SEGUROS AVALIA PREJUÍZOS

E, de acordo com o corretor de seguros Diogo Assis, essa situação prejudica não somente as seguradas em si, mas todo o mercado. E até mesmo os clientes que não tem nada a ver com as fraudes. “Além do óbvio aumento dos preços, ocorre também a exclusão dos riscos, a não aceitação, em bloco, impossibilitando o consumidor de adquirir um seguro com toda as garantias legais de proteção”, explica.

“Perde o consumidor, perde o corretor, perde a seguradora, e perde, claro, o criminoso que, com o fechamento do cerco cada vez maior, pode acabar indo parar na cadeia”, ressalta o profissional, acrescentando que a falsa comunicação de sinistro é o tipo de fraude mais comum, seja por meio de um roubo que nunca ocorreu ou de um agravo de dano a fim de provocar uma indenização maior.

E, além de espertos, os criminosos também parecem não ter limites. “Existem até casos obscuros de pessoas que amputam partes de corpos ou planejam assassinatos para receber indenização de seguro de vida. A quantidade de ações possíveis é diretamente proporcional a má percepção criminosa de que esta seria uma forma de ganho financeiro alta e fácil, o que não é”.

Mas, apesar disso tudo, o corretor opina que é possível diminuir essas estatísticas de fraudes. E uma delas passa pelos próprios profissionais do segmento. Segundo Diogo, eles funcionam como um “filtro dos bons riscos e clientes”. Já uma análise maior é feita pelas seguradoras, que possuem processos automatizados para isso – por motivos de controle, tais processos são mantidos em sigilo.

A tecnologia também pode ajudar. “Há ferramentas de cotação, processo, conferência e limite de aceitação tanto por parte das seguradoras como, em nosso caso, desenvolvidas e aprimoradas através de nosso expertise”, diz. “O mercado segurador se beneficia de ferramentas de análise cadastral, social e de comportamento para classificar riscos, precificar e aceitar ou não um seguro, diminuindo a possibilidade de fraudes”.

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